quinta-feira, 6 de outubro de 2022

É só consultar a história!


É só consultar a história!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Desculpe-me, mas não há dificuldade em compreender como a ultradireita se instalou no Brasil. Basta fazer um retrospecto na história, desde seus primórdios colonialistas, para entender sob quais valores a direita brasileira foi gestada e depois passou configurar matizes, com certas especificidades; mas, que tinham, no frigir dos ovos, a mesma base de sustentação ideológica.

Aliás, a dissimulação com a qual sempre agiu a direita no país foi justamente para se fazer caber socialmente sem maiores sobressaltos. Algo que, nos tempos coloniais, já se via proliferar, inclusive, nas práxis mais absurdamente conservadoras.

O Brasil sempre teve dificuldade de mostrar a sua verdadeira face, de dizer francamente o que realmente pensa, de se posicionar segundo a própria consciência. Aqui os interesses, especialmente os mais escusos, sempre falaram mais alto na hora de se comportar assim ou assado. Daí a existência de uma imensa alcateia de lobos em peles de cordeiros!

E foi assim que ela conseguiu permanecer por muito mais tempo à frente da governança e do poder nacional, do que a esquerda e seus matizes. Portanto, o que se vê agora não se trata de mera organização momentânea; mas, de uma tecitura que se arrasta há muito tempo. As recentes configurações ao redor do globo só fizeram colaborar no sentido de criar um intercâmbio de discussão mais intensa e direta entre os grupos e promover uma maior disseminação ideológica de suas bases entre a população.  Mas, o terreno já estava pronto!

O inconsciente coletivo brasileiro, apesar das voltas do mundo, ainda permanece moldado e modulado pelo ideário da direita. Em maior ou em menor escala as pessoas encontram pontos de aderência as pautas propostas. Acontece que nesse jogo é tudo ou nada! A simpatia, a adesão, não é seletiva, não é compartimentalizada, de modo que elas acabam enredadas a uma teia de gigantesca proporção que é muito mais perigosa e nociva do que elas poderiam supor.

É importante dizer que, como toda estrutura social, a ultradireita também tem o seu estrato dominador, o topo da pirâmide, composto por aqueles que detêm o poder, o capital, os meios de produção, e o seu estrato dominado, composto por aqueles que se interessam e defendem as mesmas ideias e funcionam como células multiplicadoras dos discursos e narrativas, na crença de que estabelecendo essa fidelidade alcançarão algum benefício. Algo facilmente visível, tanto nos registros documentais do nazismo alemão, que foi uma expressão importante da ultradireita, quanto em livros e filmes que tratam do tema 1.

Assim, a pergunta que não quer calar é por que esse ideário voltou a se recrudescer? Não sei se há uma resposta única e suficientemente capaz de dar conta da complexidade desse assunto. Contudo, entre milhares de hipóteses, uma me parece bastante plausível. Perto de alcançar 8 bilhões de seres humanos, o planeta Terra vive, hoje, um de seus piores momentos. Dar conta de sustentar regalias e privilégios para todos é uma tarefa impossível, então, a necropolítica se estabelece cada vez mais como uma solução para esse impasse.  

Depois de uma pandemia que já ceifou, até o momento, 6,5 milhões de vidas, de outras doenças que se disseminam pela força de um negacionismo irresponsável e cruel, de uma guerra insana no leste europeu, de catástrofes climáticas extremas assolando o planeta impiedosamente, não é de se espantar que a ultradireita queira garantir os melhores lugares na fila da sobrevivência. Haja vista que sua pauta não circula na inclusão social; mas, na exclusão de quaisquer minorias, na supressão de direitos, nas desigualdades socioeconômicas.  A ultradireita se coloca prioritária em tudo e os demais, que quiserem tentar sobreviver, devem estar subordinados a ela, enquanto puderem ser de alguma utilidade.

Surpresos? Não deveriam! Considerando que as Revoluções Industriais e todo os seus desdobramentos e repercussões, resultantes nas transformações do mundo, passaram diretamente pelas mãos da direita é, de fato, muito mais fácil se abster dos problemas gerados e criar mecanismos de blindagem e preservação para ela mesma. Começando por se colocarem cada vez mais prioritários nas tomadas de decisões político-sociais, por meio da construção de instrumentos jurídicos-institucionais que os favoreçam em detrimento dos demais. Inclusive, eles não se furtam em reafirmar que a acessibilidade social e os direitos devem ser condicionados ao poder econômico, ou seja, pode quem tem dinheiro.

Fica clara, portanto, a razão pela qual há um tsunami de precarizações varrendo os direitos sociais do cidadão brasileiro. Não há quaisquer intenções de permanecer investindo em políticas públicas no país. A ideia majoritária é privatizar os serviços, desconsiderando por completo a existência de uma linha histórica e profunda de desigualdade. Por isso todas as inciativas que orbitaram os programas de caráter assistencial, no país, aconteceram sem quaisquer planejamentos ou métodos; mas, por mero caráter eventual e/ou eleitoreiro. 

Nenhuma mazela social os preocupa, os aflige, os constrange. Os elementos da ultradireita se sentem acima disso, acima do Bem e do Mal. Repletos de suas certezas, de suas convicções absolutas.  Eles têm. Eles podem. Então, não precisam se aborrecer com nada que lhes pareça menor, insignificante. Na verdade, eles não enxergam pessoas além do seu raio de visão, eles enxergam objetos, peças de reposição, cujos suores, lágrimas, esforços e impostos garantem a manutenção do seu espaço, do seu poder, da sua riqueza. De modo que as perdas humanas parecem facilmente substituíveis e indolores.

Assim, enquanto uma imensa maioria não se permite refletir a respeito desse movimento em curso, a ultradireita deita e rola se estabelecendo em cada espaço de poder que ela encontre disponível. Silenciosamente, ela vai tecendo a sua rede dentro da democracia até consumi-la por completo, deixando uma casca oca, só para manter as aparências. Acontece que as aparências enganam, não é mesmo? E quem acaba pagando a conta desse processo é o imprevidente cidadão, cuja alienação voluntária (ou involuntária) permitiu acomodar-se ao jogo do poder. Até que, de repente, ele se esqueça definitivamente de que “a essência dos Direitos Humanos é o direito de ter direitos” (Hannah Arendt).



1 A Lista de Schindler (1993), A vida é bela (1997), O pianista (2002), Olga (2004), O menino do pijama listrado (2008), Jojo Rabbit (2019).