É
só consultar a história!
Por
Alessandra Leles Rocha
Desculpe-me, mas não há
dificuldade em compreender como a ultradireita se instalou no Brasil. Basta fazer
um retrospecto na história, desde seus primórdios colonialistas, para entender
sob quais valores a direita brasileira foi gestada e depois passou configurar
matizes, com certas especificidades; mas, que tinham, no frigir dos ovos, a
mesma base de sustentação ideológica.
Aliás, a dissimulação com a qual
sempre agiu a direita no país foi justamente para se fazer caber socialmente
sem maiores sobressaltos. Algo que, nos tempos coloniais, já se via proliferar,
inclusive, nas práxis mais absurdamente conservadoras.
O Brasil sempre teve dificuldade
de mostrar a sua verdadeira face, de dizer francamente o que realmente pensa,
de se posicionar segundo a própria consciência. Aqui os interesses,
especialmente os mais escusos, sempre falaram mais alto na hora de se comportar
assim ou assado. Daí a existência de uma imensa alcateia de lobos em peles de
cordeiros!
E foi assim que ela conseguiu
permanecer por muito mais tempo à frente da governança e do poder nacional, do
que a esquerda e seus matizes. Portanto, o que se vê agora não se trata de mera
organização momentânea; mas, de uma tecitura que se arrasta há muito tempo. As
recentes configurações ao redor do globo só fizeram colaborar no sentido de
criar um intercâmbio de discussão mais intensa e direta entre os grupos e
promover uma maior disseminação ideológica de suas bases entre a
população. Mas, o terreno já estava
pronto!
O inconsciente coletivo
brasileiro, apesar das voltas do mundo, ainda permanece moldado e modulado pelo
ideário da direita. Em maior ou em menor escala as pessoas encontram pontos de
aderência as pautas propostas. Acontece que nesse jogo é tudo ou nada! A
simpatia, a adesão, não é seletiva, não é compartimentalizada, de modo que elas
acabam enredadas a uma teia de gigantesca proporção que é muito mais perigosa e
nociva do que elas poderiam supor.
É importante dizer que, como toda
estrutura social, a ultradireita também tem o seu estrato dominador, o topo da
pirâmide, composto por aqueles que detêm o poder, o capital, os meios de
produção, e o seu estrato dominado, composto por aqueles que se interessam e
defendem as mesmas ideias e funcionam como células multiplicadoras dos
discursos e narrativas, na crença de que estabelecendo essa fidelidade
alcançarão algum benefício. Algo facilmente visível, tanto nos registros
documentais do nazismo alemão, que foi uma expressão importante da
ultradireita, quanto em livros e filmes que tratam do tema 1.
Assim, a pergunta que não quer
calar é por que esse ideário voltou a se recrudescer? Não sei se há uma
resposta única e suficientemente capaz de dar conta da complexidade desse
assunto. Contudo, entre milhares de hipóteses, uma me parece bastante
plausível. Perto de alcançar 8 bilhões de seres humanos, o planeta Terra vive,
hoje, um de seus piores momentos. Dar conta de sustentar regalias e privilégios
para todos é uma tarefa impossível, então, a necropolítica se estabelece cada
vez mais como uma solução para esse impasse.
Depois de uma pandemia que já
ceifou, até o momento, 6,5 milhões de vidas, de outras doenças que se
disseminam pela força de um negacionismo irresponsável e cruel, de uma guerra
insana no leste europeu, de catástrofes climáticas extremas assolando o planeta
impiedosamente, não é de se espantar que a ultradireita queira garantir os
melhores lugares na fila da sobrevivência. Haja vista que sua pauta não circula
na inclusão social; mas, na exclusão de quaisquer minorias, na supressão de
direitos, nas desigualdades socioeconômicas.
A ultradireita se coloca prioritária em tudo e os demais, que quiserem
tentar sobreviver, devem estar subordinados a ela, enquanto puderem ser de
alguma utilidade.
Surpresos? Não deveriam!
Considerando que as Revoluções Industriais e todo os seus desdobramentos e
repercussões, resultantes nas transformações do mundo, passaram diretamente
pelas mãos da direita é, de fato, muito mais fácil se abster dos problemas
gerados e criar mecanismos de blindagem e preservação para ela mesma. Começando
por se colocarem cada vez mais prioritários nas tomadas de decisões
político-sociais, por meio da construção de instrumentos
jurídicos-institucionais que os favoreçam em detrimento dos demais. Inclusive,
eles não se furtam em reafirmar que a acessibilidade social e os direitos devem
ser condicionados ao poder econômico, ou seja, pode quem tem dinheiro.
Fica clara, portanto, a razão
pela qual há um tsunami de precarizações varrendo os direitos sociais do
cidadão brasileiro. Não há quaisquer intenções de permanecer investindo em
políticas públicas no país. A ideia majoritária é privatizar os serviços,
desconsiderando por completo a existência de uma linha histórica e profunda de
desigualdade. Por isso todas as inciativas que orbitaram os programas de
caráter assistencial, no país, aconteceram sem quaisquer planejamentos ou
métodos; mas, por mero caráter eventual e/ou eleitoreiro.
Nenhuma mazela social os
preocupa, os aflige, os constrange. Os elementos da ultradireita se sentem
acima disso, acima do Bem e do Mal. Repletos de suas certezas, de suas
convicções absolutas. Eles têm. Eles
podem. Então, não precisam se aborrecer com nada que lhes pareça menor,
insignificante. Na verdade, eles não enxergam pessoas além do seu raio de
visão, eles enxergam objetos, peças de reposição, cujos suores, lágrimas,
esforços e impostos garantem a manutenção do seu espaço, do seu poder, da sua
riqueza. De modo que as perdas humanas parecem facilmente substituíveis e
indolores.
Assim, enquanto uma imensa
maioria não se permite refletir a respeito desse movimento em curso, a
ultradireita deita e rola se estabelecendo em cada espaço de poder que ela
encontre disponível. Silenciosamente, ela vai tecendo a sua rede dentro da
democracia até consumi-la por completo, deixando uma casca oca, só para manter
as aparências. Acontece que as aparências enganam, não é mesmo? E quem acaba
pagando a conta desse processo é o imprevidente cidadão, cuja alienação
voluntária (ou involuntária) permitiu acomodar-se ao jogo do poder. Até que, de
repente, ele se esqueça definitivamente de que “a essência dos Direitos Humanos é o direito de ter direitos” (Hannah
Arendt).
1 A Lista de Schindler (1993), A vida é bela (1997), O pianista (2002), Olga (2004), O menino do pijama listrado (2008), Jojo Rabbit (2019).