Sobre
indígenas, minorias ou qualquer um que se sinta à margem da sociedade
brasileira
Por
Alessandra Leles Rocha
Não entendo a perplexidade, que
toma de assalto à contemporaneidade, diante de certas notícias. Afinal, o que há
de mais profundo na existência humana ainda persiste e resiste às transformações
do mundo. O que significa que a barbárie não foi extinta, ela foi apenas
domesticada, enquadrada dentro de certos limites; mas, vez por outra, aflora de
maneira impulsiva.
Por isso, não há gradação para as
violências, para os preconceitos, para as discriminações, para a indignidade. Não
há pior ou menos pior. Há fatos. Há episódios. Aqui, ali e acolá há manifestações
diversas a respeito. E não cabe se valer de mera questão semântica, de
interpretação e denominação dos acontecimentos, na medida em que tudo está imbuído
de uma profunda distorção ética e moral, a qual legitima os seres humanos a
agir de maneira tão inapropriada e degradante com seus próprios pares.
No momento, a discussão é sobre
os ataques aos povos originários do Brasil. Desmatamentos e queimadas dos territórios.
Ação de garimpeiros ilegais. Invasões às terras indígenas. Assassinatos de
lideranças. E uma evidente desassistência humanitária por parte das autoridades
governamentais. Tudo isso tem configurado o cenário de ameaças à sobrevivência deles
no país; sobretudo, os da etnia Yanomami.
Estes formam “uma sociedade de caçadores-agricultores da floresta tropical do Norte
da Amazônia cujo contato com a sociedade nacional é, na maior parte do seu
território, relativamente recente. [...] A população total dos Yanomami, no
Brasil e na Venezuela, era estimada em cerca de 35.000 pessoas no ano de 2011” 1. A partir de 1910, o contato com o
homem branco ocorreu e se sistematizou, primeiro pela fronteira extrativista e,
depois, pelos missionários e pelo governo, durante o regime militar.
Aliás, em relação ao governo
federal, o “Plano de Integração Nacional”,
da década de 1970, não só abriu um trecho da estrada Perimetral Norte
(1973-76), potencializando os programas de colonização pública (1978-79) que “invadiram
o sudeste das terras yanomami”; mas, “detectou
a existência de importantes jazidas minerais na região”, através do projeto
RADAM (1975). O que está acontecendo, então, no território Yanomami pode ser
entendido como uma retomada dessas investidas anteriores.
Trata-se de um recrudescimento dos
empreendimentos madeireiros e agropecuários e, principalmente, da mineração desenvolvida
de maneira clandestina. O que leva, inevitavelmente, ao esvaziamento territorial
e dizimação populacional da etnia. Chegou-se, agora, a tal ponto que o mundo
tem acompanhado o flagelo das comunidades na Terra Yanomami, quanto à
desnutrição, o acometimento pela malária, o abandono institucionalizado promovido
pelo governo federal e a ação dos garimpos ilegais.
Mas, não nos esqueçamos de todo o
histórico colonialista que constitui esse país. Afinal, são mais de 500 anos reproduzindo
manifestações de desrespeito, de arbitrariedade, de desumanidade aos povos
originários e a tantas outras minorias sociais. O agora, visibilizado com o
auxílio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) é só a ponta do iceberg dessa complexa teia das relações
sociais. O que fica, cada vez mais explicitada, é a certeza da existência de um
total desprezo pelo senso humanitário; afinal, apesar de todas as
singularidades e especificidades individuais, somos uma única raça, a humana.
Sejamos honestos que durante
muito tempo, a imagem de uma criança Yanomami esquálida, subnutrida, à beira da
morte, por exemplo, embora não fosse diferente daquela de origem subsaariana, nas
mesmas condições, cuja foto se encontra com facilidade na mídia, causava menos
repercussão entre os brasileiros. Acontece que o ser humano, a vida humana, em qualquer
lugar do planeta, inclusive no Brasil, é importante. E não pode ter seu valor diminuído,
desqualificado ou negado diante de arroubos de distinção e superioridade que
insistem em se manifestar entre nós. É imperioso que se questione ou se apresentem
sinais de objeção à comportamentos tão abjetos.
O pior é que isso acontece a cada
segundo, sem que uma parcela significativa da população tenha a percepção exata
disso. Infelizmente, o inconsciente coletivo veio sendo tão manipulado, tão tendenciosamente
enviesado, ao longo do tempo, que se trivializou e normalizou as práticas que
aviltam a dignidade da pessoa humana. No entanto, é importante salientar que
muitas delas configuram crimes, segundo as leis de diversos países, incluindo o
Brasil, o que torna necessária a reflexão para a desconstrução e
ressignificação dos nossos paradigmas sociais.
Ora, chegou-se a um ponto da
história que não é mais possível conviver e coexistir sob certos pilares e
convicções. O ser humano precisa urgentemente ser reciclado, ser reeducado na
sua essência, nas suas crenças, nos seus valores, nos seus princípios. Porque não
é normal a desassistência humanitária. Nem a inacessibilidade aos direitos
humanos. Nem a distribuição gratuita das violências. Nem o acirramento das desigualdades.
...
E a humanidade sabe disso. Sabe
tão bem que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,
estabeleceu-se no seu artigo 2º que não deve existir distinção de raça, cor,
sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Porque a condição
humana, por excelência, nos coloca igualmente necessitados dos mesmos direitos.
O que nos leva a crer, segundo
Friedrich Dürrenmatt, escritor suíço, que “As
ideologias são desculpas para nos aferrarmos ao poder ou pretextos para nos
apoderarmos dele”. Então, quando alguém se abstém diante das injustiças, dos
preconceitos, das perversidades, das crueldades humanas, o faz pleno de consciência.
Certamente guiado pelos interesses e delírios de um poder que se supõe
detentor. Algo que torna o silêncio dessas pessoas ensurdecedoramente
revelador. A sua inércia, a sua inação, as posiciona socialmente, tornando
quaisquer que sejam seus eventuais discursos e narrativas contrários, fragilizados
e inconsistentes.
Assim, não adianta desconversar. Na
verdade, não são somente os indígenas ou as chamadas minorias brasileiras que
estão sob flagrante ameaça, nesse momento. É aproximadamente 90% da população nacional.
Flagelados pela fome, pelo desemprego, pelas doenças, pela ausência de
saneamento básico e moradia, pelas poluições diversas, pela deseducação, pela
carestia etc.etc.etc., vivendo “tempos sombrios,
onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” (Hannah Arendt – filósofa judaico-alemã).
A dignidade do cidadão brasileiro urge, portanto, uma compreensão elementar de
que “toda a sociedade que pretende
assegurar a liberdade aos homens deve começar por garantir-lhes a existência”
(Léon Blum – político francês).