Nem tão invisível assim!
Por Alessandra
Leles Rocha
Folhear as páginas dos jornais e das
revistas, ou visitar os sites na internet é sem dúvida um exercício de profunda
reflexão sobre o ser humano e seu modo peculiar de ser e estar sobre a Terra. Nossos
parâmetros existenciais e filosóficos postos em xeque a cada segundo trazem,
ainda que a contragosto, a dimensão exata do nosso pedestal e o nível de
seguridade da sua solidez. Tão grandes, tão complexos, tão racionais, tão...
tão... tão vulneráveis as obras meticulosas da natureza, ao que foge a
visibilidade de nossos olhos ou ao poder de nossa percepção. Do ápice ao
abismo, a humanidade sucumbe na velocidade da luz! Nem poder, nem riqueza, nem
quaisquer atributos sociais podem nos eximir do inexorável; rendidos, de
joelhos e aos clamores de misericórdia podemos a qualquer instante nos deparar
com o sopro da morte materializada em diminutas estruturas virais, bacterianas ou
fungicas.
Há aproximadamente trinta anos, a AIDS 1 veio reafirmar essa certeza para a raça
humana: somos mortais. Ainda que
as ciências médicas e biológicas tenham ao longo da história cumprido seu papel
e transformado sentenças de morte em chamas consistentes de esperança, o vírus HIV
desafia desde então, a capacidade dos mais renomados centros de pesquisa. Da descoberta
do vírus inicial aos diversos sorotipos já identificados, do mecanismo de reprodução
intracelular e de transmissão até a fabricação dos medicamentos disponíveis no
mercado para o controle da doença e ampliação da qualidade de vida do paciente,
o tempo transcorreu relativamente rápido, mas não acenou com uma descoberta
mais próxima da criação de uma vacina ou da cura propriamente dita.
E como sempre acontece com o
desconhecido, os estigmas e as especulações em torno da inicialmente denominada
“doença maldita” construiu uma fortaleza de preconceitos e de ações que não
auxiliaram positivamente na informação e na conscientização da sociedade. Em um
primeiro momento a categorização em grupos de risco criou uma segregação
declarada, mas desconsiderou o fator fundamental da doença que é a
vulnerabilidade natural do ser humano: todos podem contrair a AIDS, em
quaisquer faixas etárias, pertencendo a quaisquer etnias e grupos sociais. A
partir do momento em que a discussão da sexualidade se constitui um tabu e
enfrenta dificuldade em diversas sociedades, o modo de vida das pessoas passa
por uma análise extremamente subjetiva e superficial, na qual a existência dos
chamados grupos de risco conduz erroneamente em coloca-las expostas à doença; o
que de fato, aconteceu nessas três décadas conforme pesquisas realizadas. Mas,
foi justamente conduzindo o assunto em torno da transmissão sexual é que o foco
se restringiu e, de certa forma, negligenciou outro ponto importante: o vírus é
transmitido através do sangue e fluidos corpóreos de pessoas contaminadas. Então,
atividades comuns ao dia a dia precisariam ser mais bem orientadas e realizadas,
como por exemplo: a não utilização compartilhada de utensílios como alicates, espátulas
e lixas de unha, lâminas de barbear, agulhas e seringas; tudo o que pudesse
conter resíduos contaminados. Nesse contexto, os dependentes de hemoderivados,
tais como os hemofílicos e doentes com câncer, viveram o infortúnio da eventual
contaminação em razão da ausência de protocolos de qualidade do sangue distribuído
pelos hemocentros. Famosos e anônimos compartilharam a doença e a luta para
garantir que o Estado tomasse providencias e através da legislação determinasse
que todo o sangue coletado fosse devidamente triado e analisado antes da
liberação para uso.
Nesses longos anos, os fatos e as novas
descobertas promoveram transformações nos modelos de conscientização e prevenção;
bem como, de tratamento dos novos casos. A incidência oscilou entre as faixas etárias
e gêneros, mas a verdade é que a doença “sem rosto” continua a deixar seu
rastro de destruição. O uso do preservativo, um mecanismo de prevenção tão
importante também para outras doenças graves, como a hepatite, por exemplo,
talvez pelo prejuízo do tabu sexual não tenha se firmado da forma como deveria.
Mesmo gratuito, mesmo disponível na rede pública de saúde, mesmo presente nas
campanhas, infelizmente, seja ele masculino ou feminino, não tem cumprido o
papel de “carro chefe” da prevenção contra a AIDS 2.
Mas ela está aí! Continua tão viva como a
trinta anos 3! Invisível, sorrateira, mortal!
O próprio advento das medicações de suporte, que propiciaram uma melhoria na
qualidade e sobrevida dos pacientes, mascarou os sintomas mais aparentes. Os casos
de infectados não cientes, apesar de lamentável, ainda é realidade. Infelizmente,
os anos de bombardeio midiático sobre a AIDS foram lentamente reduzindo seu
impacto e hoje, a doença quase vive no esquecimento social; como se não
existisse mais. A sensação de lança pontiaguda apontada sobre as cabeças da
geração dos anos 80 cedeu espaço ao viver sem grandes preocupações das novas
gerações pós-descoberta da AIDS. Não podemos nos esquecer da disseminação da
doença no círculo carcerário brasileiro 4,
que inevitavelmente se expande no contágio familiar através das visitas
íntimas. Não podemos nos esquecer de que a AIDS tem deixado os seus filhos
também 5! São muitas as crianças órfãs de pais
vitimados pela doença e outras tantas, que além de órfãs também estão
acometidas pelo vírus. Não podemos nos esquecer...
Ao sermos indiferentes, ao construirmos
muralhas e abismos ideológicos e comportamentais, ao fingir que nada disso nos
diz respeito, o HIV dilapida a sociedade e não deixa mais do que um trilho de
tristeza e dívidas. Instinto de sobrevivência, cuidado, respeito, cidadania,
são apenas alguns dos valores a serem despertados em cada ser humano, quando
nos lembramos da AIDS. Poucos foram os países que efetivamente tem desenvolvido
políticas públicas de assistência aos doentes e portadores do vírus, sendo o
Brasil um deles. Mas, a verdade é que a relevância dessas ações não exime o fato
de estarmos zelando a própria morte; já que, ainda não há cura para a AIDS. A diminuta
partícula viral precisa voltar ao centro dos debates e das discussões para que a
prevenção volte a ser prioridade, a vida e o ser humano voltem a ser prioridades!
Afinal, todos devem estar cientes da sua responsabilidade individual e coletiva,
seja na conquista dos sucessos e vitórias seja no compartilhar amargo dos
dissabores.