Interrogações cotidianas
Por Alessandra Leles Rocha
Era para ser apenas mais uma “viagem de ônibus” até o centro da cidade,
mas a cabeça não para e as reflexões foram inevitáveis diante dos fatos. Pessoas
de pé, mal acomodadas, sem segurança, o veículo correndo além dos limites
permitidos, enfim... Era ou não para pensar a respeito, hein? Há coisas, nesse
mundo de meu Deus, que por mais que eu tente entender ou encontrar certa
lógica, escapam sem cerimônias do meu senso e me deixam repleta de
interrogações; dentre elas, a desobediência (quase obediente) aos códigos,
leis, regras e afins que deveriam reger e manter a sociedade em constante equilíbrio.
Como se sabe há uma legislação de trânsito no Brasil 1; pelo menos no papel! Porque na
prática, o que se vê são tantos absurdos que até parece não existir
doutrinamento nenhum a respeito. Tomando por base a própria circulação do
transporte público fica-se estarrecido. Seja nos trens, metrôs e/ou ônibus, a
realidade cotidiana beira as raias do desespero. Além da má conservação dos
veículos, a lista de irregularidades parece sem fim: motoristas e cobradores
despreparados para a função, circulação em velocidade superior a permitida, passageiros
de todas as idades e em diferentes condições físicas se acotovelando, se
equilibrando (na maioria das vezes de pé e sem apoio) e apertados como em uma
lata de sardinhas, ausência do número suficiente de veículos adaptados para deficientes
físicos, etc.etc.etc. Por isso, não são raras as ocorrências de acidentes
graves e com vítimas fatais.
Por outro lado, quem cumpre o rito de ir e vir em transporte particular
é cobrado pelas autoridades fiscalizadoras quanto ao cumprimento da legislação.
Cinto de segurança, cadeirinha própria para o transporte de crianças, limites
de cargas e passageiros, itens de segurança devidamente inspecionados, uso de
capacetes por motociclistas, validade da carteira nacional de habilitação, etc.etc.etc.
O que, certamente, tem ficado muito a desejar é o descumprimento do item “direção
sob uso de álcool e drogas”, o qual tem promovido tragédias de repercussão
nacional.
Ora, mas independente se público ou particular, veículos de todas as
naturezas transportam pessoas; cidadãos que pagam impostos, que cumprem seus
deveres e obrigações sociais. Portanto, parece haver uma incompatibilidade na
aplicação da lei, como se os riscos apontando a necessidade de determinadas
medidas protetivas (cinto de segurança, por exemplo) pudessem desaparecer de
uma situação para outra. Mas, sabemos muito bem que isso não acontece! A
superlotação e o fato de pessoas transitarem de pé nos veículos aumentam
consideravelmente o risco de gravidade, e até mortalidade, em caso de colisões.
No caso de crianças e idosos, principalmente, a dificuldade de equilíbrio é outra
variável para a ocorrência de acidentes. O que nesses casos, além da contestação
das falhas na aplicação das leis de trânsito, acrescenta-se também o
desrespeito as leis que protegem e amparam crianças e idosos no país.
Na busca pela máxima rentabilidade do empreendimento é sabido que as
empresas que disputam as concorrências para a prestação dos serviços de
transporte público, Brasil afora, não primam pela qualidade do serviço, a qual
está sob muitos aspectos diretamente relacionada à própria legislação de trânsito.
É o caso, por exemplo, da circulação de veículos lotados ao invés da
disponibilização de um número maior deles, de modo que os passageiros pudessem
transitar, ao menos, sentados. Algumas empresas chegam ao ponto de encomendar
veículos que só disponham de uma fileira de bancos, para que o restante dos
passageiros viaje de pé, se equilibrando em total perigo e desconforto, e possa
caber em número maior do que o permitido em lei. Em termos de cobrança e
fiscalização por parte dos gestores públicos, quanto a esses e tantos outros problemas,
a população se vê mais uma vez desrespeitada e negligenciada. O famoso “jogo de
empurra” entre os lados deixam os maiores interessados sempre sem resposta ou
transformação satisfatória.
Desse modo, anualmente a sociedade recebe seu quinhão de prejuízos
sociais e financeiros. O desrespeito às leis somado a situação deficitária do
transporte público no Brasil conduz desde a perda do emprego (e
consequentemente da renda) por milhares de cidadãos que chegam atrasados no
trabalho todos os dias (seja por acidentes, assaltos, problemas viários etc.),
o Estado arcar com o ônus da indenização das vítimas de acidentes no transporte
público e as aposentadorias precoces por invalidez (o que significa redução da
mão de obra economicamente ativa e a necessidade de investimentos no setor de
reabilitação física e acessibilidade em todo o país), até a mobilidade urbana
agravar seu caos pela inserção de um número cada vez maior de veículos automotivos
particulares nos médios e grandes centros (gerando os constantes
congestionamentos, aumento no número de acidentes e perda de horas preciosas no
trajeto percorrido diariamente).
Certamente há quem diga que esse problema não lhes diz respeito, pois
tem “a sorte” de não utilizar os serviços públicos de transporte. Pois bem,
você pode não usar; mas, isso não significa que você não esteja também “no olho
do furacão”. A vida em sociedade nos imputa a dependência uns dos outros. O pão
de cada dia só está na sua mesa se o padeiro conseguiu chegar ao trabalho na
hora certa. A sua casa só está impecável porque o trem que sua diarista pega
todos os dias para ir trabalhar não quebrou no meio do trajeto. ... E tem mais,
o que se diz serviço público, meus caros, é dinheiro meu, seu, nosso, empregado
em favor de determinada ação; então, se você não gosta de ver o seu dinheiro
mal empregado, comece a observar bem o que uns e outros andam fazendo dele!
Dizer apenas “C’est la vie!” para tudo o que acontece só ajuda a transformar os
fatos em uma gigantesca bola de neve. Não dá para ser tão individualista assim,
nem fugir da globalização; afinal, ela é o próprio espelho da condição humana!