Como
dizia Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é
prisioneiro das consequências” ...
Por
Alessandra Leles Rocha
As recorrentes notícias sobre as iniciativas
de expansão da ultradireita no mundo só me fazem pensar a respeito de uma
eventual manifestação coletiva da chamada Síndrome de Estocolmo.
Aos que desconhecem o termo,
trata-se de uma resposta de autopreservação em situações de estresse extremo e
medo, onde pequenos gestos de contenção do agressor são interpretados como
proteção, fortalecendo um vínculo emocional que pode levar a vítima a ter
dificuldade em romper com a situação.
Uma explicação que me parece
pertinente, considerando que essa capacidade de “ver com bons olhos” a
ultradireita emerge de uma resposta à uma eventual desilusão com certos
aspectos do progressismo, às crises estruturais econômicas e/ou institucionais,
e ao ressurgimento de narrativas que visam a criação de um inimigo comum, tais como
imigrantes, elites políticas ou o comunismo.
Acontece que debaixo desse véu de
pseudojustificativas, para tornar possível simpatizar, apoiar e/ou defender a
ultradireita, encontra-se a desumanização.
Sim, um processo chave e
instrumental na expansão desse segmento político-partidário, que busca minar os
valores éticos, explicar a exclusão e a violência contra grupos minoritários, e
consolidar o apoio em torno de ideologias autoritárias e nacionalistas.
O pior é que essa desumanização é
facilmente perceptível. Veja, por exemplo, como eles atribuem constantemente a
culpa por problemas sociais, econômicos e/ou políticos a grupos específicos,
tais como as minorias, os imigrantes, os ativistas sociais ou os opositores
políticos.
Portanto, eles criam inimigos e bodes
expiatórios, os quais não merecem viver ou ter direitos, justificando qualquer manifestação
de hostilidade contra eles.
A manipulação da verdade também é
outra estratégia. Eles são hábeis promotores de repetição de mentiras e
mensagens de ódio nas redes sociais, muitas vezes por meio de contas
automatizadas, para gerar ódio a determinados coletivos e manipular a percepção
pública.
E para alcançar esse objetivo,
eles utilizam linguagens depreciativas, insultos e rótulos para deslegitimar as
lutas e as próprias existências dos grupos-alvo; bem como, muitas vezes, incluem
a banalização da morte e a justificativa da violência contra essas pessoas.
Afinal, o seu grande propósito é estabelecer
uma sociedade dividida, promovendo a ideia de que as opiniões estão equivocadas
e que do outro lado está um inimigo a ser combatido, o que impede o diálogo e a
convivência democrática.
Nesse sentido, eles se concentram
tanto na produção de narrativas que visam justificar o autoritarismo e apagar
ou reescrever a repressão e os crimes do passado, naturalizando o absurdo e a
violação de direitos, quanto explorando temas sensíveis, tais como a religião,
a segurança e a imigração ilegal, para mobilizar a base eleitoral e criar medo
e ressentimento em relação a grupos específicos, baseando-se em teses
conspiratórias globais.
Mas, diante de quaisquer
tentativas de contestação de suas práxis, eles se autoproclamam vítimas, mesmo
quando são, na verdade, os agressores, para desviar a atenção de suas ações e
angariar apoio emocional.
Só que não é nada disso. Vem
circulando, nos últimos dias, por exemplo, em diferentes veículos de
comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, que durante a Guerra da
Bósnia, entre 1992 e 1995, turistas de diferentes nacionalidades,
principalmente italianos, pagaram para atirar em civis.
Segundo o Ministério Público de
Milão, que investiga as denúncias, “cidadãos italianos viajaram para a
Bósnia-Herzegovina para realizar uma espécie de ‘safári de atiradores’ durante
a guerra no início da década de 1990”.
A referida denúncia “descreve
uma ‘caçada humana’ por ‘pessoas muito ricas’ com paixão por armas que ‘pagavam
para poder matar civis indefesos’ de posições sérvias nas colinas ao redor de
Sarajevo. De acordo com alguns relatos, eram cobradas taxas diferentes para
matar homens, mulheres ou crianças. Mais de 11.000 pessoas morreram durante o
brutal cerco de quatro anos a Sarajevo” 1.
Aí está o ápice da desumanização,
quando facilita a perpetração de atos de extrema violência e crueldade contra certos
indivíduos ou grupos. Um "safári humano" refere-se à prática
hedionda de tratar pessoas como alvos de caça ou objetos de entretenimento,
muitas vezes, em zonas de conflito.
Portanto, um processo de profunda
indiferença ao sofrimento alheio,
onde a dor e a morte das vítimas são vistas como parte de uma experiência de diversão, e não como uma perda trágica de vidas humanas.
Não causa estranheza, então, que
por trás da desumanização estejam simpatizantes, representantes, apoiadores e
financiadores da ultradireita.
Simplesmente, porque ela se vale
frequentemente de discursos que categorizam grupos vulneráveis como os outros, os
indesejáveis ou as ameaças à
identidade nacional e aos valores tradicionais. Quase sempre, utilizando para
isso, metáforas, que remetem a
animais ou objetos para desumanizá-los
ainda mais.
Por isso, não se engane,
dissociando a ultradireita do restante do espectro político-partidário de
Direita. A ultradireita recebe frequentemente apoio de outras visões da
direita, embora essa relação seja complexa e variada entre países e contextos
políticos.
Em muitos casos, partidos de
direita convencionais formam coalizões com a ultradireita para alcançar uma
maioria parlamentar ou governamental, muitas vezes, ignorando as retóricas mais
radicais da ultradireita em nome de uma “governabilidade”.
Inclusive, o próprio crescimento
da ultradireita vem pressionando os partidos de direita convencionais a
adotarem certas pautas para evitar a perda de eleições. No fim das contas, elas
acabam comungando dos mesmos valores, crenças e princípios, como, por exemplo, a
defesa da ordem, da família tradicional, e a redução da intervenção estatal na
economia, o que pode levar a um alinhamento pontual e atenuar resistências
mútuas.
Por isso, a desumanização e a
precarização do trabalho estão intrinsecamente ligadas, ou seja, quando os
direitos trabalhistas e a segurança são reduzidos, a desumanização acontece
porque esse ambiente de vulnerabilidade e instabilidade afeta a dignidade
humana do trabalhador.
Do mesmo modo, o empobrecimento leva
à desumanização ao tratar pessoas como objetos ou despojadas de suas qualidades
humanas, muitas vezes, alimentando estigmas e indiferenças, as quais agravam a
exclusão social e a pobreza, evidenciando uma falha nas políticas públicas.
Assim, todos esses fatos geram o
adoecimento populacional, tanto físico quanto mental. Pois, na medida em que transformam
os indivíduos em objetos, números ou estereotipados como menos importantes, fomentam-se
graves consequências para a saúde pública e o bem-estar social, o que implica
diretamente na garantia da dignidade e outros direitos humanos.
