segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Como dizia Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências” ...

Como dizia Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências” ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

As recorrentes notícias sobre as iniciativas de expansão da ultradireita no mundo só me fazem pensar a respeito de uma eventual manifestação coletiva da chamada Síndrome de Estocolmo. 

Aos que desconhecem o termo, trata-se de uma resposta de autopreservação em situações de estresse extremo e medo, onde pequenos gestos de contenção do agressor são interpretados como proteção, fortalecendo um vínculo emocional que pode levar a vítima a ter dificuldade em romper com a situação.

Uma explicação que me parece pertinente, considerando que essa capacidade de “ver com bons olhos” a ultradireita emerge de uma resposta à uma eventual desilusão com certos aspectos do progressismo, às crises estruturais econômicas e/ou institucionais, e ao ressurgimento de narrativas que visam a criação de um inimigo comum, tais como imigrantes, elites políticas ou o comunismo.

Acontece que debaixo desse véu de pseudojustificativas, para tornar possível simpatizar, apoiar e/ou defender a ultradireita, encontra-se a desumanização.

Sim, um processo chave e instrumental na expansão desse segmento político-partidário, que busca minar os valores éticos, explicar a exclusão e a violência contra grupos minoritários, e consolidar o apoio em torno de ideologias autoritárias e nacionalistas.

O pior é que essa desumanização é facilmente perceptível. Veja, por exemplo, como eles atribuem constantemente a culpa por problemas sociais, econômicos e/ou políticos a grupos específicos, tais como as minorias, os imigrantes, os ativistas sociais ou os opositores políticos.

Portanto, eles criam inimigos e bodes expiatórios, os quais não merecem viver ou ter direitos, justificando qualquer manifestação de hostilidade contra eles.

A manipulação da verdade também é outra estratégia. Eles são hábeis promotores de repetição de mentiras e mensagens de ódio nas redes sociais, muitas vezes por meio de contas automatizadas, para gerar ódio a determinados coletivos e manipular a percepção pública.

E para alcançar esse objetivo, eles utilizam linguagens depreciativas, insultos e rótulos para deslegitimar as lutas e as próprias existências dos grupos-alvo; bem como, muitas vezes, incluem a banalização da morte e a justificativa da violência contra essas pessoas.

Afinal, o seu grande propósito é estabelecer uma sociedade dividida, promovendo a ideia de que as opiniões estão equivocadas e que do outro lado está um inimigo a ser combatido, o que impede o diálogo e a convivência democrática.

Nesse sentido, eles se concentram tanto na produção de narrativas que visam justificar o autoritarismo e apagar ou reescrever a repressão e os crimes do passado, naturalizando o absurdo e a violação de direitos, quanto explorando temas sensíveis, tais como a religião, a segurança e a imigração ilegal, para mobilizar a base eleitoral e criar medo e ressentimento em relação a grupos específicos, baseando-se em teses conspiratórias globais.

Mas, diante de quaisquer tentativas de contestação de suas práxis, eles se autoproclamam vítimas, mesmo quando são, na verdade, os agressores, para desviar a atenção de suas ações e angariar apoio emocional.

Só que não é nada disso. Vem circulando, nos últimos dias, por exemplo, em diferentes veículos de comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, que durante a Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995, turistas de diferentes nacionalidades, principalmente italianos, pagaram para atirar em civis.

Segundo o Ministério Público de Milão, que investiga as denúncias, “cidadãos italianos viajaram para a Bósnia-Herzegovina para realizar uma espécie de ‘safári de atiradores’ durante a guerra no início da década de 1990”.

A referida denúncia “descreve uma ‘caçada humana’ por ‘pessoas muito ricas’ com paixão por armas que ‘pagavam para poder matar civis indefesos’ de posições sérvias nas colinas ao redor de Sarajevo. De acordo com alguns relatos, eram cobradas taxas diferentes para matar homens, mulheres ou crianças. Mais de 11.000 pessoas morreram durante o brutal cerco de quatro anos a Sarajevo” 1.

Aí está o ápice da desumanização, quando facilita a perpetração de atos de extrema violência e crueldade contra certos indivíduos ou grupos. Um "safári humano" refere-se à prática hedionda de tratar pessoas como alvos de caça ou objetos de entretenimento, muitas vezes, em zonas de conflito.

Portanto, um processo de profunda indiferença ao sofrimento alheio, onde a dor e a morte das vítimas são vistas como parte de uma experiência de diversão, e não como uma perda trágica de vidas humanas.

Não causa estranheza, então, que por trás da desumanização estejam simpatizantes, representantes, apoiadores e financiadores da ultradireita.  

Simplesmente, porque ela se vale frequentemente de discursos que categorizam grupos vulneráveis como os outros, os indesejáveis ​​ou as ameaças à identidade nacional e aos valores tradicionais. Quase sempre, utilizando para isso, metáforas, que remetem a animais ou objetos para desumanizá-los ainda mais.

Por isso, não se engane, dissociando a ultradireita do restante do espectro político-partidário de Direita. A ultradireita recebe frequentemente apoio de outras visões da direita, embora essa relação seja complexa e variada entre países e contextos políticos.

Em muitos casos, partidos de direita convencionais formam coalizões com a ultradireita para alcançar uma maioria parlamentar ou governamental, muitas vezes, ignorando as retóricas mais radicais da ultradireita em nome de uma “governabilidade”.

Inclusive, o próprio crescimento da ultradireita vem pressionando os partidos de direita convencionais a adotarem certas pautas para evitar a perda de eleições. No fim das contas, elas acabam comungando dos mesmos valores, crenças e princípios, como, por exemplo, a defesa da ordem, da família tradicional, e a redução da intervenção estatal na economia, o que pode levar a um alinhamento pontual e atenuar resistências mútuas.

Por isso, a desumanização e a precarização do trabalho estão intrinsecamente ligadas, ou seja, quando os direitos trabalhistas e a segurança são reduzidos, a desumanização acontece porque esse ambiente de vulnerabilidade e instabilidade afeta a dignidade humana do trabalhador.

Do mesmo modo, o empobrecimento leva à desumanização ao tratar pessoas como objetos ou despojadas de suas qualidades humanas, muitas vezes, alimentando estigmas e indiferenças, as quais agravam a exclusão social e a pobreza, evidenciando uma falha nas políticas públicas.

Assim, todos esses fatos geram o adoecimento populacional, tanto físico quanto mental. Pois, na medida em que transformam os indivíduos em objetos, números ou estereotipados como menos importantes, fomentam-se graves consequências para a saúde pública e o bem-estar social, o que implica diretamente na garantia da dignidade e outros direitos humanos.