Contra
o quê? Contra quem?
Por
Alessandra Leles Rocha
Às vezes, tenho a nítida
impressão de que a humanidade manifesta uma visão romantizada da guerra, como
se tudo transcorresse a partir de um ideário de força e poder, com todos os
seus heróis e vilões, ocupando espaços determinados nas linhas de enfrentamento.
Mas, a verdade é que não é bem
assim. Se o mundo evoluiu, é obvio que as guerras também. Nesse sentido, os
instrumentos bélicos se aprimoraram a tal ponto que deram origem a uma poderosa
indústria armamentista, que depende dos movimentos geopolíticos conflituosos para
faturar cifras inimagináveis; mas, também, vê com bons olhos os conflitos de
menor proporção.
É, caro (a) leitor (a), há quem
fomente os distúrbios e as animosidades para favorecer a produção e o comércio
de armas. E para esse fim, a narrativa proposta por essa “indústria da destruição” é a de que não se precisa despender horas
e horas de diálogo, a fim de se chegar a um denominador comum para as
divergências; basta se valer da exibição e utilização dos arsenais bélicos, que
estão cada vez mais requintados e letais.
O que em síntese, significa que a
vida perdeu totalmente a sua importância, passando a ficar gravemente exposta,
sempre a um triz da fatalidade. De modo que as sociedades estão cada vez mais
presas ao agora, porque o amanhã é um refém involuntário da violência.
Não se engane, as guerras estão
em todo lugar. Países. Polícias. Milícias. Afetos e desafetos. Próximos e
distantes. Em qualquer esquina. A qualquer hora do dia ou da noite. Alianças
que se desfazem e refazem ao sabor dos interesses da ocasião. Afinal, essa
indústria não pode parar. E assim, ela realmente não precisa aguardar a
deflagração de uma desavença de grandes proporções para manter a sua
contabilidade em dia.
Nesse contexto, a retórica
armamentista se aprimora de maneira muito consistente, porque atinge os pontos
nevrálgicos da sociedade e acena como uma solução rápida e eficaz. A começar
pelo fato de que ela transforma vulneráveis em valentões. Dá visibilidade a
quem, certamente, poderia passar despercebido.
A arma na mão agiganta uma
superioridade que nem sempre existe, mas que surge pelo tênue limite entre a
vida e a morte. Sua propriedade significa status, na medida de um poder
aquisitivo suficiente para ter e manter esse tipo de artefato. O que explica a
falência flagrante dos discursos e intenções em nome da pacificação social.
Não, não é sem razão, portanto, a
resistência que tem havido no combate e mitigação dos discursos de ódio social,
os quais quase sempre resultam na exacerbação da violência armada. Aqui e ali as ocorrências, registradas ou não, dão conta de episódios de misoginia,
sexismo, aporofobia, homofobia, xenofobia, racismo ou etarismo1. Sem contar os casos relacionados às
diferenças ideológicas, de caráter político e religioso, ou aqueles resultantes
de outros delitos, como tráfico de drogas, por exemplo.
Afinal de contas, a violência
armada possibilita uma recorrência que não tarda a favorecer uma naturalização
desses acontecimentos. As vidas perdidas jazem tão perfeitamente nas planilhas
estatísticas dos obituários que, a sociedade passa por esses números sem percebê-los
ou questioná-los. Esquecendo-se de que, diante da banalização da violência
armada, quando qualquer motivo é motivo para a beligerância, ninguém está a
salvo de ser uma vítima em potencial.
Tanto que o historiador
britânico, Eric Hobsbawm, escreveu “Uma
previsão: a guerra no século 21 provavelmente não será tão assassina como era
no século 20. Mas a violência armada, criando sofrimento e perdas
desproporcionais, continuará onipresente e endêmica – ocasionalmente epidêmica
– em grande parte do mundo. A perspectiva de um século de paz é remota”.
Por isso, quando vejo a imprensa
mundial se desesperando com a situação da retomada do Afeganistão pelo Talibã,
penso que cabe uma reflexão profunda a respeito. A verdade é que a grande
questão que impera ali, começa bem antes do Talibã e do seu radicalismo
extremista.
É preciso entender que as guerras
e os conflitos armados não cabem em recortes de tempo, há uma linha histórica
condutora até se alcançar o apogeu da beligerância. O que explica as idas e
vindas de personagens distintos; ora aliados, ora adversários, e raras às
vezes, meros espectadores.
Sendo assim, aqui, ali ou acolá,
não dá para desperdiçar atenção as fotografias, aos “frames”, é preciso ver o filme inteiro para entender o que se
sucede naquele ponto. Daí é preciso paciência e disposição, pois cada novo
acontecimento vai exigir sempre uma recapitulação da história.
Mas, no fim de cada ato desse
processo de releitura, não há como fugir do fato de que a síntese que se
apresenta tende a manifestar sempre a seguinte compreensão, ou seja, “Através da violência você pode matar um
assassino, mas não pode matar o assassinato. Através da violência você pode
matar um mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da violência
você pode matar uma pessoa odienta, mas não pode matar o ódio. A escuridão não
pode extinguir a escuridão. Só a luz pode” (Martin Luther King Jr.).
Diante de todas essas
considerações, então, só posso concordar com as palavras do físico e astrônomo,
Marcelo Gleiser, quando ele diz que “Há
algo de muito patológico numa espécie que se diz inteligente, mas só é capaz de
garantir sua sobrevivência pelo acúmulo de armas”.
Porque, no fim das contas, “O que, na verdade, oprime o espírito, o que
provoca inquietudes e desassossegos, é a pobreza mental. Poderemos ser ricos
economicamente, mas se não somos capazes de oferecer, a nós mesmos, as enormes
vantagens que a riqueza do conhecimento pode proporcionar, haverá muita miséria
dentro de nossos palácios ou de nossas vestes” (Gonzalez Pecotche – educador
e pedagogista).
1
Misoginia – ódio ou aversão às mulheres.
Sexismo - discriminação e
ou preconceito baseada no gênero ou sexo de uma pessoa.
Aporofobia – repúdio, aversão
ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em
situação de pobreza ou miséria.
Homofobia – é o preconceito
contra pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans, queers,
pansexuais, agêneros, pessoas não binárias e intersexo).
Xenofobia – é a
desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estrangeiras.
Racismo – discriminação e
ou preconceito (direto ou indiretamente) contra indivíduos ou grupos por causa
da sua etnia ou cor.
Etarismo – preconceito contra os idosos.