sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Contra o quê? Contra quem?


Contra o quê? Contra quem?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Às vezes, tenho a nítida impressão de que a humanidade manifesta uma visão romantizada da guerra, como se tudo transcorresse a partir de um ideário de força e poder, com todos os seus heróis e vilões, ocupando espaços determinados nas linhas de enfrentamento.

Mas, a verdade é que não é bem assim. Se o mundo evoluiu, é obvio que as guerras também. Nesse sentido, os instrumentos bélicos se aprimoraram a tal ponto que deram origem a uma poderosa indústria armamentista, que depende dos movimentos geopolíticos conflituosos para faturar cifras inimagináveis; mas, também, vê com bons olhos os conflitos de menor proporção.

É, caro (a) leitor (a), há quem fomente os distúrbios e as animosidades para favorecer a produção e o comércio de armas. E para esse fim, a narrativa proposta por essa “indústria da destruição” é a de que não se precisa despender horas e horas de diálogo, a fim de se chegar a um denominador comum para as divergências; basta se valer da exibição e utilização dos arsenais bélicos, que estão cada vez mais requintados e letais.

O que em síntese, significa que a vida perdeu totalmente a sua importância, passando a ficar gravemente exposta, sempre a um triz da fatalidade. De modo que as sociedades estão cada vez mais presas ao agora, porque o amanhã é um refém involuntário da violência.

Não se engane, as guerras estão em todo lugar. Países. Polícias. Milícias. Afetos e desafetos. Próximos e distantes. Em qualquer esquina. A qualquer hora do dia ou da noite. Alianças que se desfazem e refazem ao sabor dos interesses da ocasião. Afinal, essa indústria não pode parar. E assim, ela realmente não precisa aguardar a deflagração de uma desavença de grandes proporções para manter a sua contabilidade em dia.

Nesse contexto, a retórica armamentista se aprimora de maneira muito consistente, porque atinge os pontos nevrálgicos da sociedade e acena como uma solução rápida e eficaz. A começar pelo fato de que ela transforma vulneráveis em valentões. Dá visibilidade a quem, certamente, poderia passar despercebido.

A arma na mão agiganta uma superioridade que nem sempre existe, mas que surge pelo tênue limite entre a vida e a morte. Sua propriedade significa status, na medida de um poder aquisitivo suficiente para ter e manter esse tipo de artefato. O que explica a falência flagrante dos discursos e intenções em nome da pacificação social.

Não, não é sem razão, portanto, a resistência que tem havido no combate e mitigação dos discursos de ódio social, os quais quase sempre resultam na exacerbação da violência armada. Aqui e ali as ocorrências, registradas ou não, dão conta de episódios de misoginia, sexismo, aporofobia, homofobia, xenofobia, racismo ou etarismo1. Sem contar os casos relacionados às diferenças ideológicas, de caráter político e religioso, ou aqueles resultantes de outros delitos, como tráfico de drogas, por exemplo.

Afinal de contas, a violência armada possibilita uma recorrência que não tarda a favorecer uma naturalização desses acontecimentos. As vidas perdidas jazem tão perfeitamente nas planilhas estatísticas dos obituários que, a sociedade passa por esses números sem percebê-los ou questioná-los. Esquecendo-se de que, diante da banalização da violência armada, quando qualquer motivo é motivo para a beligerância, ninguém está a salvo de ser uma vítima em potencial.

Tanto que o historiador britânico, Eric Hobsbawm, escreveu “Uma previsão: a guerra no século 21 provavelmente não será tão assassina como era no século 20. Mas a violência armada, criando sofrimento e perdas desproporcionais, continuará onipresente e endêmica – ocasionalmente epidêmica – em grande parte do mundo. A perspectiva de um século de paz é remota”.

Por isso, quando vejo a imprensa mundial se desesperando com a situação da retomada do Afeganistão pelo Talibã, penso que cabe uma reflexão profunda a respeito. A verdade é que a grande questão que impera ali, começa bem antes do Talibã e do seu radicalismo extremista.

É preciso entender que as guerras e os conflitos armados não cabem em recortes de tempo, há uma linha histórica condutora até se alcançar o apogeu da beligerância. O que explica as idas e vindas de personagens distintos; ora aliados, ora adversários, e raras às vezes, meros espectadores.

Sendo assim, aqui, ali ou acolá, não dá para desperdiçar atenção as fotografias, aos “frames”, é preciso ver o filme inteiro para entender o que se sucede naquele ponto. Daí é preciso paciência e disposição, pois cada novo acontecimento vai exigir sempre uma recapitulação da história.

Mas, no fim de cada ato desse processo de releitura, não há como fugir do fato de que a síntese que se apresenta tende a manifestar sempre a seguinte compreensão, ou seja, “Através da violência você pode matar um assassino, mas não pode matar o assassinato. Através da violência você pode matar um mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da violência você pode matar uma pessoa odienta, mas não pode matar o ódio. A escuridão não pode extinguir a escuridão. Só a luz pode” (Martin Luther King Jr.).

Diante de todas essas considerações, então, só posso concordar com as palavras do físico e astrônomo, Marcelo Gleiser, quando ele diz que “Há algo de muito patológico numa espécie que se diz inteligente, mas só é capaz de garantir sua sobrevivência pelo acúmulo de armas”.

Porque, no fim das contas, “O que, na verdade, oprime o espírito, o que provoca inquietudes e desassossegos, é a pobreza mental. Poderemos ser ricos economicamente, mas se não somos capazes de oferecer, a nós mesmos, as enormes vantagens que a riqueza do conhecimento pode proporcionar, haverá muita miséria dentro de nossos palácios ou de nossas vestes” (Gonzalez Pecotche – educador e pedagogista).



1 Misoginia – ódio ou aversão às mulheres.

Sexismo - discriminação e ou preconceito baseada no gênero ou sexo de uma pessoa.

Aporofobia – repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em situação de pobreza ou miséria.

Homofobia – é o preconceito contra pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans, queers, pansexuais, agêneros, pessoas não binárias e intersexo).

Xenofobia – é a desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estrangeiras.

Racismo – discriminação e ou preconceito (direto ou indiretamente) contra indivíduos ou grupos por causa da sua etnia ou cor.

Etarismo – preconceito contra os idosos.