sábado, 4 de dezembro de 2010

Um bom dedo de prosa

Por Alessandra Leles Rocha

            Seja nos bons ou nos maus momentos, conversar, bater um papo legal com alguém é sempre algo produtivo. Vejamos o exemplo da terapia, que nada mais é do que a opção de extrair do dia um tempo especial para desabafar as agruras e as felicidades da vida, podendo usufruir das respostas que o som da própria voz desnuda sem cerimônia; afinal, nessa história de buscar um especialista para decifrar os enigmas do consciente e inconsciente, ele acaba como mero coadjuvante, enquanto a grande estrela resplandece do interior de nossas próprias entranhas.
            Embora eu seja do tipo bastante reservada no meu cotidiano, mineirinha observadora e curiosa, talvez por ter sido filha única e neta única do lado materno por muitos anos, nunca me fiz de rogada quando o assunto é um bom dedo de prosa. Outro dia, assistindo a um programa na televisão ouvi que as mulheres, em geral, tem uma necessidade de falar pelo menos oito mil palavras por dia; então, confirmei com alegria que me enquadro bem dentro desse perfil e se não falo as tais oito mil palavrinhas diárias, as completo trazendo para o papel. E nesse vai e vem de ideias e pensamentos, a vida vai se explicando ou complicando para trazer-nos mais emoção, sagacidade, interesse, reflexão.
            É! Justamente quando a conversa se encaminha para a reflexão que mais e melhor podemos extrair os sumos preciosos da existência humana. Não importa se o filosofar será em grande estilo ou uma trivial “filosofia de botequim”, o bacana é que esse “parar para pensar”, regado ou não aos prazeres da birita, nos pega pela mão e nos conduz a viagens profundas de reconhecimento sobre quem habita em nós. Sim! Somos mestres em dizer “eu me conheço muito bem” e não raras às vezes somos tomados de assalto por reações extremas, jamais imaginadas; o que prova que de fato não conhecemos quem somos nós. Por isso, esse exercício reflexivo se repetido mais amiúde dá-nos a oportunidade de expandirmos esse grau de conhecimento.
            Em um desses bate-papos, há pouco tempo, discutindo retratos da sociedade contemporânea, um amigo fez uma consideração fantástica sobre o perfil banal de muitos seres humanos quanto ao poder. Segundo ele, tem havido uma epidemia da “síndrome dos pequenos poderes”, ou seja, por mais ínfimo que seja o poder de um indivíduo, ele através das suas ações promove a visibilidade desse poder e incorpora esse comportamento dando-lhe uma dimensão irreal. Seja no trabalho, na sociedade, na família, exemplos desse tipo de indivíduo são fáceis de detectar. Não lhes basta à consciência do seu papel na sociedade, o reconhecimento pelos méritos individuais e profissionais, ele precisa sentir-se superior, mandatário, importante sobre os demais, imprescindível sempre. Sem se dar conta, muitas vezes, do ridículo, esse ser humano torna-se inconveniente, desagradável, incapaz de perceber limites e respeitar os limites alheios, de aceitar-se no tamanho que é.
            Apesar das boas risadas diante do assunto, as palavras repousaram em minha mente e me levaram a ponderar sobre um gigantesco quadro de baixa-estima em que vive a sociedade. Ela até conversa muito, mas não o essencial e na profundidade necessária para dirimir situações como a descrita acima. A “síndrome dos pequenos poderes” nasceu sobre a sombra de uma sociedade que ao longo do tempo foi enaltecendo o TER em detrimento do SER e como o ser humano apresenta necessidade de sobrevivência (ou seja, as suas necessidades fisiológicas), de segurança (ou seja, garantir as suas necessidades fisiológicas), de associação (ou pertencimento) e de autoestima (ou seja, o conhecido amor próprio que lhe permite produzir para si e para os outros), foi existindo uma distorção nos seus valores. Cada vez mais individualistas, competitivos, os seres humanos estão beirando as raias da loucura quando o assunto é “não perder o seu lugar ao sol”. O ringue está aberto e os lutadores de punhos cerrados para nocautear o inimigo, mesmo que este seja imaginário ou, na verdade, seja ele próprio. Por isso, tantos estão fazendo discursos do alto de caixinhas de fósforo e tijolinhos! Repetem mil vezes para si, as verdades de suas mentes imaginativas, no afã de que estas se transformem em realidade absoluta. Desfilam pelo mundo o jeito blasé de desdenhar a realidade e se limitam as superficialidades da vida no âmbito do círculo social. Abafam seus sofrimentos, inquietudes e lamentações na manta de ferro que construíram dentro de seus corpos, enquanto for possível não explodir. Não pensem vocês que os acometidos pela “síndrome dos pequenos poderes” sejam o mais perfeito exemplo de silêncio monastérico! Não! Eles conversam e muito; mas, apenas o que se refere ao contexto do TER. Então, vez por outra, quando tudo chega ao limite do intolerável, eles se rendem ao colo do divã ou da igreja.
            É minha gente, tem gente que não está dando o valor devido a esse dom da espécie humana que é conversar; aliar a fala e o pensamento lógico em favor da própria evolução. Nem adianta vir com esse papo de que “não tem nada a dizer”, “minha conversa é desinteressante”, “sou tímido (a)”, etc.etc.etc.; somos seres únicos, semelhantes às vezes, mas únicos e temos sim, muito para compartilhar. Somente conversando é que a gente se entende, se descobre, se encanta, se identifica, se irrita, se... se... se...; enfim, cumpre o rito sagrado que é viver e conviver, que se dá conta de que a superioridade não existe, mesmo que haja diferença no saldo bancário, na marca da roupa, do sapato, no transporte usado, na compra do supermercado, no perfil do lixo deixado na porta de casa... Somos humanos, Homo sapiens, descendentes de Lucy 1! Nascemos, crescemos, rimos, choramos, erramos, acertamos, sofremos, causamos sofrimento, e inevitavelmente morreremos. Falar, conversar, papear, nos identifica, nos liberta, nos dimensiona, nos situa nesse mundo de meu Deus. Lembre-se de que “quem cala consente”; então, nada melhor que um dedo de prosa para reafirmar que você está vivo, consciente e apto a dar a sua opinião.



1 http://www.scribd.com/doc/20606976/Fossil-revela-a-origem-do-homem