sexta-feira, 4 de março de 2022

Apesar de tudo, “ainda somos os mesmos...”


Apesar de tudo, “ainda somos os mesmos...”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Cada dia mais me convenço de que aquela antiga canção está certa, “ainda somos os mesmos”1. De Alexandre – O Grande aos imperialistas da contemporaneidade, a verdade é que o ser humano quer sim, sempre quis, dominar a pequena esfera azul que vaga silenciosamente no universo. Trata-se da consagração do poder absoluto, inquestionável, que supera quaisquer resistências e questionamentos em relação “aos fins justificarem os meios”.

E pensando a respeito, acaba-se percebendo, então, que a humanidade não dá a mínima para a barbárie que aflora nesse tipo de empreitada. Pois é, o ser humano não liga para o extermínio da sua própria espécie. Não liga para o sofrimento alheio. Não liga para a destruição. Não, não liga. O vale-tudo faz parte do jogo e suas consequências e desdobramentos, também.

Por isso, ao virar e revirar as páginas da história, as guerras e os conflitos sangrentos estão lá, marcando presença, impondo seu destaque, lustrando o ideário de poder de muita gente por aí. No fundo, a sensação que se tem é de que é muito fácil lançar o morticínio na vala estatística. Como se as vidas humanas fossem desimportantes, ou substituíveis; sobretudo, aquelas naturalmente já designadas aos campos dos desalentos e das vulnerabilidades sociais.

De modo que o horror, a perplexidade, a indignação, o constrangimento, são realmente sentidos por quem está no olho do furacão, sentindo na pele, na alma, a brutalidade dos acontecimentos. Para os demais, essas são sensações temporárias, com prazo de validade marcado, principalmente, pela intensidade decorrente do trabalho dos veículos de informação e de comunicação.

Ora, quanto mais se alonga a peleja, mais as notícias vão esfriando o seu impacto novidadeiro sobre as pessoas, até caírem nas armadilhas da banalização, da trivialização ou da normalização, como queiram expressar. Sim, chega-se a um momento em que as guerras se transformam em mais do mesmo, não há novidades senão os números extraordinariamente chocantes que crescem em uma verdadeira progressão geométrica.

Até que um dia a guerra acaba, os escombros começam a ser dispersados, a reconstrução tem seu processo delineado, o luto passa a ser ressignificado, enfim...  E num primeiro momento, chega-se realmente a acreditar que de todo aquele processo duro, complexo, exaustivo, a humanidade vai extrair lições e vai quebrar paradigmas rumo à evolução. Só que não.

Antes do que se imagina, em algum lugar, um novo conflito é deflagrado e a iminência de um evento de grandes proporções paira sobre o planeta. O ciclo em busca do poder absoluto está de volta. A chama é acesa novamente, a fogueira das vaidades arde em fogo alto, sinalizando uma nova rota para a conquista de cada pedaço do mundo.

Como se nada, nem ninguém, pudesse se interpor nesse caminho, criando obstáculos ou desafios. E ainda que o façam, isso não diminui ou faz esmorecer os conquistadores. Porque eles não enxergam o alongar do tempo como inimigo, mas como um aliado às suas estratégias. Não basta invadir, pilhar, usurpar. É preciso consolidar cada conquista. Não há vitória pela metade. É tudo ou nada. Caso contrário, os reveses começam a consumir e a deteriorar a trajetória de sucesso, impondo retrocessos importantes.

Isso explica porque os grandes impérios um dia caíram. E sua queda se dá, em grande parte, porque o excesso dos devaneios, das loucuras, das arrogâncias e das prepotências contaminam as bases que os fundamentaram, restando uma carcaça oca e frágil, incapaz de se manter por tanto tempo de pé, seguindo adiante para reverter o processo.

Então, nesse ponto de exaustão, percebe-se que “é indispensável retirar dos postos de comando todos os gestores que, estúpida e criminosamente, puseram o império à beira da falência. Fizeram um trabalho de sapa e revelaram uma incompetência invulgar, além do que desviaram fundos públicos. Cada pobre exausto e destroçado, cada cego, cada criança nascida na cadeia, cada homem, cada mulher e cada criança torturados pela fome sofrem simplesmente porque a riqueza comum foi desviada por todos esses governantes. Nenhum dos responsáveis dessa classe dirigente pode deixar de ser condenado na barra do tribunal da Humanidade” (Jack London 1).

Isso explica porque as guerras começam e terminam, impérios caem e emergem outros, e a humanidade, infelizmente, segue o curso de permanecer sendo a mesma. Segundo George Bernard Shaw, “o progresso é impossível sem mudança. Aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”. E ele estava certo!

Pior do que o resultado expresso por essa ânsia de dominação beligerante, é o fato de não se ver uma mínima luz de esperança transformando o sopro dos ventos, pelo menos, até aqui na contemporaneidade. Isso nos traz uma dimensão sobre o quanto a humanidade é comodista, é alienada por suas zonas de conforto, é mesquinha na defesa das suas regalias e privilégios.

Como escreveu Fiódor Dostoiévski, “Somos assim; sonhamos o voo mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, da ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram” (Os Irmãos Karamazov, 1879).

Assim, quem sabe, um dia, a força das conjunturas seja tão avassaladora, que nos jogue literalmente ao fundo do fundo do poço para que sejamos confrontados à seguinte reflexão: “A covardia coloca a questão: ‘É seguro? ’. O comodismo coloca a questão: ‘É popular? ’. A etiqueta coloca a questão: ‘É elegante? ’. Mas a consciência coloca a questão, ‘É correto? ’. E chega uma altura em que temos de tomar uma posição que não é segura, não é elegante, não é popular, mas o temos de fazer porque a nossa consciência nos diz que é essa a atitude correta” (Martin Luther King Jr.). Aí, então, os impérios perderiam o sentido de existir e de fazer tantos sonharem, tantos morrerem em vão.



1 Como nossos pais (Antônio Carlos Belchior) - https://www.letras.mus.br/elis-regina/45670/

1 The People of the Abyss (O povo do abismo), 1903. 

Um comentário:

Acredito que todo comentário é o resultado da disposição de ler um texto até o final, ou seja, de uma maneira completa e atenta, a fim de extrair algo de bom, de interessante, de reflexivo, e, até quem sabe, de útil. Sendo assim, meus sinceros agradecimentos pelo tempo dedicado ao meu texto e por suas palavras.