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domingo, 16 de julho de 2023

Nas asas da estupidez odiosa


Nas asas da estupidez odiosa

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Foi um absurdo tão grande que eu precisei de um tempo para decantar a estupidez e começar a tecer uma reflexão mais clara e precisa a respeito. O episódio lastimável ocorrido no aeroporto de Roma, tendo como alvos da afronta um ministro do Supremo Tribunal Federal e seu filho, não resume os fatos a si mesmos.

Para início de conversa, quando é que o brasileiro vai entender que a cidadania é um exercício que implica na expressão do respeito e da civilidade, hein? O brasileiro precisa entender que a posse de um passaporte e de um visto para estar em outro país não o exime das reponsabilidades inerentes à sua identidade nacional. De modo que o fato de manifestar atitudes anticidadãs em espaço geográfico outro, que não o de seu país de origem, não muda o curso da história.

Sem contar que ao agir de maneira criminosa e com tamanho destempero e ignorância, os indivíduos reafirmaram uma imagem pejorativa do seu país de origem, o que inevitavelmente poderá vir a estabelecer possíveis embaraços diplomáticos para outros cidadãos que pretendam viajar ao exterior. Em tempos contemporâneos, de alta tecnologia, as notícias correm na velocidade da luz, não é mesmo? Depois não reclame de ser tratado com desdém, como ‘forasteiro’, lá fora.

Sim, porque no campo dos estudos identitários sabe-se, por exemplo, que “a ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais como a divisão entre ‘locais’ (insiders) e ‘forasteiros’ (outsiders). A produção de categorias pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de ‘forasteiros’, de acordo com o sistema social vigente, garante um certo controle social. A classificação simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem social” (Woodward, 2000, p.46 1).

Portanto, o grupo de ‘forasteiros’ que estavam no aeroporto em Roma, por força de suas atitudes incivilizadas, inevitavelmente, propiciaram, tanto aqui como lá, “problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem. Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e permanente: estamos comprometidos com os sentidos e o político. Não temos como não interpretar” (ORLANDI, 2001 2).

E aí, então, chegamos ao cerne dessa reflexão. O que se viu é muito mais do que as imagens e as falas em si, porque está no subjetivo das emoções, dos sentimentos. A síntese desse e de tantos outros episódios acontecidos, acontecendo e a acontecer, é o ódio. Algo extremamente inflamável e poderoso, que faz o ser humano perder a razão, o bom senso, o limite, a civilidade, retornando, como em um passe de mágica, ao tempo da barbárie das cavernas.

Por mais estranho que possa parecer, o ódio alimenta o sentido da vida, para o ser humano. Ele traz um norte, uma significância, um motivo para lutar, para agir, que acaba por criar uma sensação de importância e pertencimento social, reduzindo drasticamente a presença da solidão que o individualismo contemporâneo tanto acentua. O ódio enviesa, de certa forma, o narcisismo, na medida em que move o indivíduo a atos grandiosos, exibicionistas, que funcionam como ecos de uma mesma coletividade identitária.

Sim, porque é com seus pares que eles dividem e compartilham essas pseudoglórias. Mas, por que a sociedade brasileira chegou a esse ponto? Bem, não há como negar que a Direita e seus matizes, principalmente, os mais radicais e extremistas, viram na realidade socioeconômica brasileira um terreno fértil para lançar as sementes do ódio. Segundo Sêneca, “Quando o sangue respira o ódio, não pode dissimular-se”. Sendo assim, contando com o contexto tecnológico mundial, foi fácil executar o efeito multiplicador desse ideário odioso, dentro dos mais diferentes espaços sociais.

O que intriga no curso desse processo, e acaba por desconstruir certas narrativas, é o fato de que não se viu em ação, respostas contundentes, o bastante, para arrefecer e eliminar a possibilidade de consolidação dessas ideias extremistas, por parte das instituições. Houve por parte delas um excesso de condescendência, de complacência, de gentileza, como se os fatos e os episódios não demonstrassem quaisquer riscos, ameaças ou gravidade. Como se bastassem meia dúzia de palavras para trazer à tona a normalidade e o equilíbrio social. O que explica muito bem o 8 de janeiro de 2023!

E esse comportamento institucional abriu sim, precedentes para a consolidação de uma crença de impunidade total, tendo em vista de que um dos pilares do ideário extremista contemporâneo é a exaltação da liberdade de expressão. Eles são nutridos, pelas mídias sociais, de exemplos factuais variados que confirmam a existência da impunidade. Por isso, eles não se sujeitam às regras sociais, às leis, às instituições ou o que quer que seja. Reside neles a convicção de que a sua liberdade de expressão é superior e inegociável.

De onde vem essa convicção? Ora, de uma construção corporativista histórica, na qual as relações sociais sempre permitiram uma demasiada flexibilização do ordenamento jurídico, para não ferir ou desagradar, uns e outros, dentro de uma mesma esfera de interesses.  Assim, fazem vista grossa e ouvidos de mercador, para não ter que enfrentar os espinhos e os dissabores de questões graves e delicadas. O que faz nutrir a sanha do fascismo, do radicalismo, do extremismo, quando não encontram um ponto final robusto no seu caminho.

Lá nos anos 2000, o senador Pedro Simon, em certa entrevista, disse “Essa escalada de denúncias retrata um país de ladrões impunes” 3. De modo que não há como negar que “Nada denuncia mais o grau de civilidade de um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade” (Glória Kalil). Diante disso é que você entende porque “O Brasil não tem povo, tem público” (Lima Barreto).



1 SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e Diferença – A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. 133p.

2 ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001.