quarta-feira, 24 de março de 2021

300... 300 mil


300... 300 mil

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Ao que tudo indica, 300 é o número da vergonha nacional. 300... 300 mil. Sempre cercados por uma afrontosa vigília de velas. Dessa vez, são 300 mil... mortos pelo Sars-COV-2. Anônimos. Famosos. Cidadãos brasileiros que perderam a vida por conta dos descaminhos do seu país. Infelizmente, o Brasil não parece preocupado em perder talentos, conhecimentos, mãos para todas as obras. Só que o tempo não é generoso, não espera. Muito menos, o novo vírus.

Enquanto figuração para fotografia, aceno midiático aos que possam se interessar, a reunião de hoje cumpriu o papel. Mas, depois de um ano inteiro patinando entre idas e vindas, ter que ouvir a informação de que será necessário aguardar pela formação de uma equipe para saber como lidar com os desafios é profundamente desalentador.  Afinal, são 300 mil a menos na conta da população brasileira. Sem contar todos os que estão à mercê da sorte para não cerrar fileira nessa estatística funesta.

Ora, não há o que possa tranquilizar a população nesse momento. A resistência contra as medidas sanitárias profiláticas é absurdamente real. Pessoas estão chegando ao ponto de matar os outros para satisfazer seu pseudodireito de descumprir orientações simples como o uso de máscaras, o distanciamento social, a higienização frequente das mãos com água e sabão ou álcool em gel. Assim como, a insuficiência de vacinas e a lentidão no ritmo da imunização.

Porque o amadorismo que se tem experimentado é demasiadamente constrangedor, especialmente, pelo fato de não caber na realidade vacinal do país. Celeiro de grandes centros de pesquisa médica e produção de imunobiológicos, o Brasil se permitiu declinar desse protagonismo interno para se submeter a dinâmica das relações comerciais internacionais; inclusive, abdicando de emanar esforços conjuntos a outros países em favor da quebra de patentes das vacinas desenvolvidas para o combate dessa Pandemia.

Não, não é à toa que 300 mil chocam, humilham, diminuem a expressão da nossa cidadania. Porque as vidas perdidas contam bem mais do que suas próprias histórias. Elas são um espelho o qual não se pode fugir do reflexo. Cada um desses seres humanos é a tradução exata do que foi ou não feito para evitar o seu trágico fim. Oxigênio? Remédios para intubação? Leito em Unidade de Terapia Intensiva (UTI)? Vacina em tempo hábil? Quaisquer que sejam as razões, no fim das contas, não importa. Motivos podem explicar; mas, jamais justificar. Talvez, por isso mesmo, seu próprio silêncio grita tão alto e repetidas vezes.  

É; 300 mil não é um número que se possa esquecer fácil, da noite para o dia. A Pandemia desconstruiu a ideia de que as perdas humanas tendem a se depositar em camadas frias de números esquecíveis. A brutalidade dos acontecimentos é tamanha que a morte revive a cada minuto dentro de nós. Ela se perpetua na monstruosidade da inação, da incompetência, da falta de habilidade para conter a fúria desse inimigo invisível. De modo que, talvez, não tarde esses números avançarem rapidamente.    

Mesmo assim, quando pensarmos sobre esse número que conseguiu marcar a história nacional por vieses tão impactantes, que sejamos capazes de uma reflexão profunda a respeito de que “considerando que viver é artimanha que se cultiva entre aquilo que se enxerga e aquilo que mora no invisível, seguimos o rastro da flecha que atravessa o tempo: o contrário da vida não é a morte, o contrário da vida é o desencanto. Para os saberes que margeiam essa terra e sopram ar, hálito e palavras de força para afugentar o espectro colonial, vida e morte transbordam os limites de uma compreensão meramente fisiológica para se inscrever em outras dimensões. Assim, cabe falarmos em mortandade e vivacidade, considerando que a primeira é um estado de desencanto da vida, e a segunda é a experiência do ser integral e integrado como a natureza, mesmo que eventualmente tenha morrido” (trecho do livro “Encantamento – Sobre a Política da Vida”, de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino (Mórula Editorial).


Um comentário:

Acredito que todo comentário é o resultado da disposição de ler um texto até o final, ou seja, de uma maneira completa e atenta, a fim de extrair algo de bom, de interessante, de reflexivo, e, até quem sabe, de útil. Sendo assim, meus sinceros agradecimentos pelo tempo dedicado ao meu texto e por suas palavras.