quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"Se queres prever o futuro, estuda o passado". Confúcio

ONTEM, HOJE... E O AMANHÃ?


Por Alessandra Leles Rocha


Ainda que a história seja cíclica e promova a repetição de bons e maus hábitos, considero que a reafirmação daquilo que manifesta o lado ruim e sombrio da humanidade é a mais plena contradição da potencialidade racional humana.
Aprender com os erros não é uma questão de virtude; mas, de uma lógica natural que permeia a nossa capacidade racional e cognitiva. Então, não aprender ou, simplesmente, se recusar a fazê-lo parece pura exaltação da deterioração de nossos princípios e valores que querem manter-se na contramão do altruísmo, da generosidade e da fraternidade humana.
Passadas pouco mais de sete décadas do final da Segunda Guerra Mundial, talvez, seja mesmo importante trazer a pauta de discussão e reflexão o que foram os horrores daquele período; na medida em que a humanidade reaviva os mesmos discursos e práticas, na tecitura de novos padrões de segregação, intolerância e violência; sobretudo, no que diz respeito às crianças.
A guerra construída pelos adultos tem como primeira linha de destruição a infância e a juventude, antes mesmo que qualquer inimigo seja de fato atingido por balas de canhão ou bombas de efeito mortal.  O primeiro efeito a que ela submete a sociedade é o esfacelamento da estrutura familiar seja pelo recrutamento dos indivíduos para a luta armada, seja pela fuga desesperada em busca de abrigo, seja pela matança (in) discriminada daqueles que insistem em sobreviver à margem dos acontecimentos,... Portanto, se estabelece o surgimento de uma geração de órfãos de guerra.
Centenas de milhares de crianças pertencentes a ambos os lados do conflito ficam a mercê da sorte e/ou da ajuda humanitária espalhada pelo mundo, numa tentativa de reconstrução familiar seja através do reencontro com algum parente que sobreviveu ao conflito, ou pela adoção por uma nova família.
No entanto, muito além das marcas visíveis provocadas pela vivência em uma zona de conflito bélico, são as marcas invisíveis e inconscientes as de maior poder de impacto na desconstrução identitária dessas crianças. A violência da ruptura dos laços afetivos existentes no campo familiar e sociocultural gera desdobramentos tanto de ordem física quanto psicoemocionais, os quais podem nunca ser superados e tornarem-se um entrave perene na qualidade de vida desses indivíduos. Afinal de contas, espera-se que muitas delas consigam, apesar da tragicidade de suas experiências de vida, alcançar a fase adulta.  
Quando nos deparamos com cerca de vinte e cinco mil e oitocentas crianças e adolescentes desacompanhados ou separados de suas famílias, chegando à Itália por via marítima em 2016, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) 1, não podemos, então, deixar de relembrar as duras páginas da história mundial. Vítimas das guerras e conflitos armados, da fome e da miséria que assola muitos países, elas sofrem as consequências do mais alto grau de desumanização que se pode pensar, tornando-se alvos totalmente vulneráveis à xenofobia, à discriminação, à marginalização e à exploração, como ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial. 
A questão dos refugiados ainda se aprofunda na medida em que muitos países, incluindo os Estados Unidos da América, têm acirrado suas políticas contra a imigração, sob o argumento de serem, na verdade, políticas de segurança contra o terrorismo. Diante disso, a emissão de vistos e autorização de permanência legal aos imigrantes tem sido dificultada cada vez mais pelas autoridades. Isso significa que a permanência ilegal passa, a partir de agora, a sinalizar que muitas famílias constituídas nessas condições terão que enfrentar a deportação dos pais e o consequente esfacelamento familiar; na medida em que, filhos nascidos nesses países serão cidadãos locais e não serão expulsos como os pais.
O que as autoridades responsáveis por essas políticas migratórias não responderam até o momento é como se responsabilizarão pelo bem estar dessas crianças e adolescentes que são cidadãos do seu país? Se elas não se preocupam com o indivíduo migrante, parece, também, não se preocuparem com seus próprios cidadãos. Essa é uma questão muito séria não só do ponto de vista das questões jurídicas; mas, sobremaneira, das reflexões que recaem sobre a dupla cidadania, o senso de pertencimento, a identificação, a vivência e a participação política e social dessas crianças e adolescentes. Segundo relata Anne Frank, uma adolescente alemã de origem judaica, vítima do Holocausto, em seu diário publicado depois da sua morte, em 1947: “A gente não faz ideia de como mudou até que a mudança já tenha acontecido”. Portanto, não estariam essas autoridades reescrevendo a mesma história já escrita durante a Segunda Guerra Mundial? Não estaria o século XXI construindo uma nova legião de órfãos da desumanidade?
De repente, é como se a sociedade mundial tivesse se esquecido dos próprios compromissos que assumiu publicamente, os novos alicerces ideológicos de um mundo menos bárbaro e cruel. Alguém se lembra, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948 2, e/ou da Convenção sobre os Direitos das Crianças, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 20 de novembro de 1989 3? Então...
Isso me faz lembrar as sábias palavras do psicanalista, educador, teólogo e escritor, Rubem Alves, “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno”. Pois é, palavras em um pedaço de papel, na verdade, não significam muito. Temos tantas leis, códigos, doutrinas, regras,...  Mas, se nos falta à consciência, o que adiantam? Não é o fato do registro formalizado a razão da nossa obrigação ou não em fazer. São os nossos princípios éticos e morais os verdadeiros faróis a iluminar os nossos atos. Depende da nossa vontade, do nosso mais íntimo querer a transformação do mundo em um lugar de justiça e de paz. 
Estamos sempre dizendo que as crianças são o futuro; mas, se as negligenciamos e as desrespeitamos tão acintosamente, o que esperar do amanhã? Se a resposta lhe incomodar, talvez, seja esse o momento de rever os seus conceitos e engajar-se na mudança; afinal, sempre é tempo. 

4 comentários:

  1. Olá
    Curioso
    Bom fim de semana
    http://ernestocastanha.blogspot.com

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  2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948 não tem a força de uma resolução.
    A ONU deveria transformar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e Resolução, o que daria maior força. Se houvesse um maior senso de humanidade, bastava o que disse o Rubem Alves: “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno”. P

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  3. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 deveria ser Resolução.
    Uma Resolução tem uma força maior. Se os ditos humanos seguissem o que pensa
    Rubem Alves, “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno”, seriamos de fato humanos.

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    1. Caro Rafael, você tem razão. No entanto, as declarações servem como importante instrumento norteador para os países, sem interferirem em sua autonomia. É por isso, que após tornarem-se signatários delas, os países ratificam o compromisso através de suas câmaras legislativas. Contudo, nenhuma norma jurídica em nenhum tempo será, por si só, capaz de agir sobre a vontade humana, no que diz respeito a manifestação do seu altruísmo, da sua fraternidade, da sua comunhão. Como disse Jean-Jacques Rousseau, "Se a razão que faz o homem, é o sentimento que o conduz".

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